No curto tempo que lhe resta, e se aproveitando da situação de exercício da Presidência Pró-Tempore do Mercosul, o ilegítimo governo de Michel Temer tenta acelerar as tratativas para o fechamento de um Acordo de Associação entre o Mercosul e a União Europeia.
Como acreditar em um acordo que vai sendo negociado, e que prevê um capítulo de parceria política e defesa da democracia com um governo ilegítimo que se instala a partir da ruptura institucional e da violação da democracia no Brasil?
Se vamos adiante dessa preliminar, temos que constatar que as negociações têm se desenrolado sem transparência. Ao contrário até das negociações anteriores da ALCA e no âmbito da OMC − onde, depois de anos de luta e reivindicações, as organizações sociais conseguiram conquistar o acesso a documentos e, em alguns casos, inclusive a reuniões oficiais − nas negociações entre UE-Mercosul, se já não tínhamos acesso aos documentos de negociação, agora com o novo governo que não mostra nenhuma transparência em suas negociações internacionais, estaremos ainda mais afastados. Exigimos que os pormenores das negociações sejam divulgados e que antes de cada reunião, a sociedade conheça as propostas com as quais o Mercosul concorda e o conteúdo proposto pela UE. Vale ressaltar que as ponderações sobre a falta de transparência do processo partem também dos nossos parceiros sindicais e de organizações sociais da UE, e mesmo de membros dos parlamentos nacionais dos países do Mercosul e da União Europeia.
Entendemos que nesse momento de crise instalada no Brasil, qualquer oferta que seja feita deveria tomar em consideração os impactos imediatos sobre a renda, o emprego e as possibilidades de desenvolvimento nacional no curto-prazo. As propostas de abertura ainda maior do setor de bens industriais nesse momento podem representar a pá de cal no fragilizado setor industrial brasileiro, e vazaram informações que existem propostas de redução tarifária em setores importantes, como o complexo metalomecânico. As propostas de abertura da concorrência de empresas europeias nas compras governamentais dos países do Mercosul, em especial do Brasil, com preferências para as empresas europeias, em um momento em que a demanda se encontra no chão, com pouquíssimas oportunidades para os fornecedores brasileiros, em especial quando combinada a medidas como o teto dos gastos públicos e a criação da TJP, reduzindo a demanda e aumentando os custos de investimento para as empresas nacionais, podem representar entraves incontornáveis para a retomada industrial no país.
Na área de agricultura, até aqui o que se ouve é sobre a insistência dos governos do Mercosul em conseguir pequenas concessões no mercado de carnes para os megaexportadores do agronegócio da região, e a defesa dos países europeus, liderados por países como França, Polônia, Irlanda e Espanha, em defesa dos seus pequenos agricultores, como se do lado de cá do Atlântico não houvesse uma agricultura familiar e camponesa que pudesse ser atingida em vários de seus produtos pelas propostas de liberalização que podem estar inseridas no acordo.
Na área de serviços, estragos ainda maiores podem ser feitos em setores como o financeiro, de educação, saúde, água e saneamento, energia, e outros, comprometendo direitos ainda presentes na Constituição brasileira e as perspectivas de desenvolvimento futuro, uma vez que cristalizados em acordos como o que vem se negociando entre o Mercosul e a UE, os custos de mudanças no caso de que governos no futuro resolvam alterar os rumos serão enormes. Vale lembrar que algumas das mudanças representam inclusive limitar ou negar tanto ao Congresso Nacional no Brasil quanto aos níveis executivos e legislativos subnacionais o poder de legislar sobre vários temas envolvendo esses temas, que estariam desta forma amarrados por tratados internacionais – uma clara violação da capacidade soberana dos poderes constituídos no Brasil de decidir sobre o seu futuro.
Mais grave de tudo, informes do lado europeu dão conta de que, enquanto a oferta atual que o Mercosul coloca na mesa oferece reais melhorias quanto a questões tarifárias, facilitando a vida dos europeus, a oferta europeia se limitaria em geral a concessões tarifárias de nação mais favorecida, ou seja, que não iriam muito além do que já consta nos acordos da OMC – que justamente terá sua Ministerial em dezembro próximo em Buenos Aires e onde se prevê que novas concessões serão definidas. Idem para a área de compras governamentais, onde o poder de definição dos níveis nacionais e subnacionais na UE limitariam de fato a abertura para a disputa de compras no espaço europeu pelas empresas do Mercosul. Ou seja, além de ruim no geral, o acordo é assimétrico contra o lado dos países em desenvolvimento do Mercosul, favorecendo os desenvolvidos países da União Europeia, o que por si só é uma mostra de subalternidade no processo negocial.
Finalmente, limitando ainda mais os direitos dos cidadãos brasileiros, um dos pontos mais preocupantes na agenda de interesses ofensivos da UE é em propriedade intelectual, calcada em propostas com graves consequências para a saúde pública. O bloco europeu defende propostas como exclusividade de dados, extensão de prazo de patentes e apreensão de medicamentos em trânsito. Todas elas limitam a circulação de medicamentos genéricos, acentuando ainda mais a crise global de acesso a medicamentos e indo na contramão das recomendações do Painel de Alto Nível da ONU sobre acesso a medicamentos, convocado em 2016 pelo Secretário Geral para buscar soluções frente a cada vez mais gritante "incoerência política" entre direitos de propriedade intelectual e direitos humanos. Dessa forma, a consequência inevitável do acordo será o aumento do preço dos medicamentos para o cidadão comum, seja pela menor disponibilidade de remédios no SUS ou pelo próprio aumento na farmácia, em decorrência da extensão da propriedade intelectual. Além disso, destacamos que essas propostas, além de irem muito além do exigido pelo Acordo TRIPS, vão de encontro a diversas recentes iniciativas na região, como as novas guias de exame de patentes da Argentina, as iniciativas de licenciamento compulsório na Colômbia e no Peru, e as proposta de reforma da legislação brasileira que são favoráveis à saúde pública. Por esta razão, é fundamental que os negociadores dos países que compõem o Mercosul não aceitem a incorporação de dispositivos do tipo TRIPS-plus e não endossem cláusulas que contribuam para o chamado enforcement de propriedade intelectual. Também é salutar que propriedade intelectual não se torne objeto de barganha para a finalização do acordo, visto o impacto negativo que as regras propostas pela UE podem causar na garantia do direito à saúde dos povos.
Entendemos desta forma que, antes de seguir adiante com essas negociações, é fundamental dar transparência e avaliar as consequências para o Brasil e a região do que está sendo negociado e concedido. Dar informações à sociedade brasileira que será atingida e aos parlamentares que terão sua capacidade de ação restringida pelo acordo é fundamental. É preciso ainda que esteja claro para nossos parceiros e para os governos europeus que a UE está negociando com um governo ilegítimo, e o produto dessa negociação estará contaminado pelo peso dessa ilegitimidade.
Reafirmamos mais do que nunca nesse novo cenário internacional nosso compromisso na construção de laços de integração cada vez mais fortes com os povos europeus, mas fundamentados em critérios de solidariedade, igualdade, justiça e respeito aos direitos humanos de nossos povos. Exigimos políticas conjuntas de geração de empregos e que os direitos sócio laborais sejam protegidos, sendo priorizados sobre os objetivos de liberalização comercial, com base na Declaração Sócio Laboral do Mercosul e a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.