Pequeno guia sobre o Software Livre (2)

Um pressuposto deste ensaio didático: inclusão digital deve significar, antes de tudo, melhorar as condições de vida de uma comunidade com ajuda da tecnologia. Então, a informática e a internet devem ser ferramentas de libertação do indivíduo, de autonomia do cidadão, que deve saber usar o equipamento e os programas tanto em benefício próprio como coletivo.

Entretanto, vivemos em uma sociedade na qual leis de diversos países protegem monopólios, como copyright e patentes, inibindo:

  • o uso de bens culturais, como livros, músicas, quadros…, que hoje são arquivos e programas computacionais;
  • a criatividade;
  • a liberdade de expressão;
  • o acesso à informação e ao conhecimento.

O desconhecimento e o desleixo das pessoas quanto ao uso de seus equipamentos computacionais e programas permitiu, sob o ambiente da internet, a implantação de um modelo de negócios de vigilância contínua, que tornou usual o envio de propagandas personalizadas. Mas não se trata só de um desleixo pessoal: equipamentos, sistemas e programas, especialmente os privativos (proprietários), são destinados ao controle e vigilância de seus usuários.

Mais ainda: o ensino no Brasil, inclusive na universidade, é defensor e perpetuador desse sistema e seus monopólios, grandes corporações que controlam o mundo e que detêm todo o poder, seja financeiro, seja político.

Neste ensaio mostra-se um panorama desta situação que opõe o desejo da inclusão digital ao interesse  e controle dos monopólios, estratégias e atitudes possíveis para enfrentá-los e as possibilidades abertas pelo uso dos softwares livres.

 Ampliação do prazo de validade

Com o passar dos anos, a lei dos direitos autorais nos EUA foi revisada e/ou protelada, mas sempre resultando em ampliação do período de direito de propriedade intelectual.

Em meados da década de 1990, grandes empresas começaram a se preocupar com algumas de suas obras, cujos direitos autorais expirariam em pouco tempo. Personagens como Mickey Mouse, Pluto, Pateta, Pato Donald e Perna Longa, filmes como E o vento levou e uma série de músicas de George Gershwin, entre elas a cançãoRhapsody in Blue e a ópera Porgy and Bess logo entrariam emdomínio público.

A Walt Disney e a Time Warner fizeram uma campanha encabeçada no Congresso pelo Senador Trent Lott que, em 1998, resultou na ampliação dos direitos autorais após a morte do autor de:

  • 50 para 70 anos, se o direito fosse propriedade de uma pessoa e
  • 75 para 95 anos, caso o direito fosse de uma empresa.

Portanto, o tempo de monopólio foi gradativamente aumentado por políticos patrocinados por grandes editoras e grandes conglomerados de mídia e empresas que vivem de direitos autorais e de patentes.

Assim, o ponto de equilíbrio que deveria existir entre o estímulo à criação e o interesse social em usufruir o resultado da obra criada passou quase a inexistir. E várias gerações não poderão exercer qualquer criatividade sobre as obras.

Crime ou desobediência civil?

Desde que obras e patentes começaram a ser registradas, os direitos sobre elas passaram a ser violados.

Há que se considerar que uma parte dessa violação é crime e outra é desobediência civil. É importante notar que o crime é uma violação da lei. É clandestino e existe o entendimento de que a lei violada é uma lei legítima. Já a desobediência civil é pública e é motivada pelo caráter ilegítimo da lei.

Mas o que dizer de pessoas que reproduzem uma obra para fins não comerciais?

Por exemplo: sempre encenaram-se peças teatrais em escolas. E as pessoas sempre declamaram poesias, cantaram e tocaram canções para os amigos e para a comunidade sem pagar os direitos. Isso sempre ocorreu, mesmo quando tudo era decorado e cantado – na época em que alguém tinha que copiar manualmente os textos.

Evidentemente, na medida em que a tecnologia disponibilizou aparelhos domésticos de gravação como o mimeógrafo, o gravador e a fotocopiadora, as pessoas passaram a fazer cópias, de modo cada vez mais fácil: livros, letras e músicas de canções, fotos e vídeos, para si e seus amigos, sem pagar os devidos direitos.

Quando surgiu a possibilidade de reprodução digital de arquivos, as pessoas continuaram a fazê-lo, já que intuíam que aquele pagamento não fazia sentido, pois apenas estavam usufruindo desse bem coletivo que é a cultura humana.

Software Livre – sobre o livre e o grátis
Tendo feito essas reflexões sobre propriedade, voltemos ao Software Livre. Imediatamente nos defrontamos com os conceitos de Livre e Grátis, de um modo poético:

 São programas mais diversos
Que muitos chamam de “free”
Mas isso tem um problema
Que está na palavra em si
Pois esse “free” pode ser
livre ou grátis, e você?
Você sabe diferir? 

trecho do cordel de Cárlisson Galdino – Do livre e do Grátis (leia a íntegra aqui)

Licenças, Copyleft e as quatro liberdades

Richard Stallman concebeu um tipo de licença de direitos autorais para assegurar a manutenção das liberdades em versões reproduzidas e melhoradas dos programas. Denominou-a Copyleft:

Copyleft: all rights reversed”  – (Esquerdos autorais: todos os direitos invertidos).

 Contrariamente ao que é encontrado em muitas obras:

Copyright: all rights reserved”  (Direitos autorais: todos os direitos reservados).

Copyleft ou Licença de Documentação Livre baseia-se em diferentes tipos de licenças que permitem ao autor, garantindo o reconhecimento de sua produção e autoria, estabelecer os usos que autorizam e os que limitam a sua obra.

O autor abdica dos direitos de propriedade em favor da livre circulação das criações intelectuais, pois o Copyleft encara os utilizadores de conteúdo como potenciais criadores. A licença permite a livre cópia, divulgação e, até, a modificação do original, e torna possível a difusão do conteúdo para um maior número de pessoas.

Portanto, o Software livre respeita quatro liberdades dos usuários:

  1. pode-se executar o programa, para qualquer propósito;
  2. pode-se estudar como o programa funciona e adaptá-lo para as próprias necessidades;
  3. pode-se redistribuir cópias a quem as deseje e
  4. pode-se aperfeiçoar o programa, e liberar os aperfeiçoamentos, para que toda a comunidade se beneficie.

Evidentemente o acesso ao código fonte é um pré-requisito para as liberdades 1 e 3.

A licença garante a livre distribuição e modificação das obras e, em contrapartida, as novas distribuições ficam vinculadas à mesma licença.

Assim, um programador pode modificar um programa livre, mas necessariamente o novo programa resultante destas modificações deve ser distribuído nos mesmos termos. A pessoa que copia e aprimora um programa livre, fruto de esforços coletivos voluntários, deve respeitar a condição de manter as suas características: o direito de rodar livremente, modificar livremente e copiar livremente.

Ou seja, a licença não permite que, a partir do produto base, alguém faça uma alteração e o patenteie sob uma licença Copyright e o venda sob essa licença. Se for feita alguma alteração, a obra deve ser liberada para a sociedade de acordo com a mesma licença e, se a obra for modificada e comercializada, existe a obrigação de referenciar o(s) autor(es) original(is).

Qual o benefício desse modo de fazer? Se um usuário se propuser a estudar e aprender, poderá chegar a um domínio de software que possibilite um excelente uso de equipamentos de informática, sem comprar nenhuma licença e sem tornar-se um “pirata”. Mais ainda: poderá realizar pequenas ou grandes mudanças, revelando sua face decriador.

Evidentemente, corre-se risco de apropriação em países onde não existe legislação específica para este tipo de licença, nos quais alguém pode simplesmente se apoderar de uma obra e registrá-la em seu nome. Mas esse é o mesmo risco do Copyright. E se houver uma utilização indevida da obra sem conhecimento do respectivo autor, esse deverá iniciar um processo legal contra o infrator, seja qual for a licença do produto.

Note-se que o objetivo não é acabar com os direitos de autoria. O que as licenças de Copyleft propõem é divulgar uma alternativa legal ao atual sistema de propriedade de direitos intelectuais.

Aliás, na medida em que a tecnologia aumenta a facilidade de cópia, transforma o Copyright em algo quase inútil. Como todos sabem, as violações de licença e as cópias sem autorização são extremamente frequentes. Assim, só quando assumirmos que é quase impossível evitar tais ações conseguiremos proteger a autoria.

Ressalte-se que, tanto como a população em geral, muitos criadores não conhecem essas licenças corretamente e sujeitam-se à lógica dominante, apenas por desconhecerem outras alternativas.

A licença Copyleft não impede a comercialização da obra, desde que a empresa permita a livre distribuição e modificação da obra produzida. Por exemplo: uma editora pode editar e vender uma obra distribuída na Internet sob Copyleft, de maneira semelhante às obras que já estão sob domínio público. Mas, como a licença não permite ações monopolistas, não poderá impedir que outra editora o publique ou que uma pessoa copie o livro impresso por qualquer meio.

Inicialmente, apenas programas computacionais começaram a ser criados sob essa licença, mas, depois, o movimento pela livre circulação da cultura e do saber estendeu-se a outros tipos de conteúdos, especialmente os artísticos, literários, musicais, científicos e jornalísticos.

Em 2001, surgiram outras licenças que estão consagradas pela Creative Commons, uma organização sem fins lucrativos fundada por Lawrence Lessing, professor de Direito da Universidade de Stanford. Quando um autor escolhe a licença para a sua obra, decide se alguém pode ou não fazer uso comercial, se pode modificá-la ou se a obra derivada deve ou não ter o mesmo tipo de licença da  original.

Isso foi necessário e eficiente e inverteu a lógica, da propriedade para a finalidade: por exemplo, a livre modificação de textos pode ser aplicada a alguns tipos de trabalhos, como textos de manuais de programas, que até podem ser empreendimentos coletivos. Já com relação à produção científica, a modificação do texto não faz sentido, pois é absolutamente necessário identificar o autor, atribuir-lhe responsabilidades e garantir a confiabilidade da fonte.

Em geral, essas novas licenças são centradas na manutenção da integridade da obra e usam o Copyleft para garantir a liberdade de reprodução, garantindo ao autor o direito de ser remunerado quando seu trabalho intelectual tiver que ser consubstanciado em meio físico para fins de comércio. Assim, supera-se a ideia da “propriedade intelectual” e instala-se a tutela do “trabalho intelectual”.

Portanto, quando se compra um software, na realidade compra-se uma licença. E é essa licença que diz se o programa é livre.

O software proprietário ou privativo só permite utilização definida pela empresa que o concebeu. Uma patente ou Copyright rege esse tipo de programa.

Copyleft baseia-se em diferentes tipos de licenças em que o autor estabelece usos para a sua obra e garante o reconhecimento de sua produção e autoria.

Os autores desses produtos podem determinar:

  • Atribuição (by) – O autor deve ser mencionado
  • Obras derivadas (nd) – Permite gerar novas obras
  • Uso comercial (nc)- Permite ganhos financeiros
  • Compartilhar (as) – pela mesma licença, para quem desejar.

O usuário pode usar o programa como desejar, desde que não contrarie a licença. Pode estudar, comentar, sugerir, demonstrar, modificar…

Quando modifica, é necessário conhecer a linguagem em que o programa foi criado, e estudar o código fonte, para poder modificá-lo e adicionar comandos, para codificar novas telas e opções.

Assim, a licença livre empodera o usuário, dando a ele o controle sobre o software.

Portanto, uma licença Copyleft permite que um usuário seja um criador. Permite inovar e compartilhar.

Direitos ou monopólios?

Muitos projetos de lei que estão transitando em diferentes países referem-se ao controle da internet quanto à “propriedade intelectual”, que está dividida em:

  • Marcas
  • Patentes
  • Direito autoral (= Copyright)

Contrariamente ao que dizem as propagandas, não regulam direitos, objetivam garantir monopólios.

Vamos lembrar que monopólio é a exploração sem concorrência de um negócio ou indústria, em virtude de um privilégio, tal como, por um período de tempo, ser o único fabricante / vendedor de uma obra (um livro, uma música, um medicamento, um programa, um jogo, entre outros).

Diferentemente do que as propagandas dizem, a legislação impulsionada pelos grandes grupos econômicos não protege o autor, o criador, mas o detentor do monopólio.

Ou seja, apenas o detentor pode usar o seu privilégio como desejar. Somente esse detentor pode copiar, modificar, fabricar, vender a obra que criou, durante um certo período de tempo.

É por isso que a primeira providência de uma editora ou uma gravadora, ao contratar um criador, é assenhorar-se de seu direito de autor, em troca da produção de cópias e sua distribuição.

Assim, no caso de Copyright, as leis protegem a empresa que produz e/ou distribui cópias (Editora, Gravadora), que, na realidade, seria umaatravessadora.

Outra diferença importante: o monopólio pode ser herdado ou vendido, enquanto a autoria, não. E o horizonte é sempre temporal. Portanto, alguém ou uma empresa que não é a criadora tem seu foco de interesse na rentabilidade da obra – e ela está vinculada diretamente ao prazo de validade do monopólio.

Resultado: uma enorme pressão política para alongar o período do monopólio, prolongando-o por um grande período de tempo, causando enormes obstáculos ao florescimento artístico e cultural.

A pergunta óbvia: o que acontece quando acaba o prazo de validade? A resposta é decisiva, pois após o período de validade do monopólio, que varia com leis de cada país, o detentor não tem mais nenhum direito de impedir a uso de sua obra ou invenção por quem quiser utilizar, sem qualquer pagamento.

Ou seja, a obra entra para o conhecimento comum da humanidade, como sempre aconteceu, antes desse tipo de legislação ser aprovada.

Assim, uma obra sob Copyright, após o período do monopólio, que varia com leis de cada país, fica sob domínio público, que é o conjunto de obras culturais, de tecnologia ou de informação (livros, artigos, obras musicais, invenções e outros) com livre uso comercial, pois não estão submetidas a direitos patrimoniais exclusivos de alguma pessoa física ou jurídica.

Nesse ponto a informática tem uma função revolucionária, pois todos os bens culturais podem ser digitalizados, transformados em arquivos de músicas, imagens, vídeos, e disponibilizados via internet.

O acesso à informação e ao conhecimento foi muito facilitado e deveria haver uma grande redução de preços, pois meios físicos são muito menos utilizados e transportados.

Como os monopólios são protegidos

Em diferentes países, foram surgindo projetos de lei e acordos comerciais cujo objetivo é

  • proteger governos e monopólios;
  • exigir que provedores de Internet exerçam vigilância sobre seus assinantes;
  • limitar a liberdade de expressão e a privacidade.

Oficialmente o ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement, Tratado de Comércio Anti Pirataria) é um acordo comercial anti pirataria, mas seu real objetivo sempre foi o de proteger a propriedade intelectual, como o Copyright (sobre livros e filmes) e patentes sobre software, hardware e  medicamentos. Assinado por 32 países desde 2011, o acordo ainda não está em vigor, por falta de ratificação devido a seguidos protestos.

Entretanto, mesmo após ter sido rechaçado, o ACTA gerou muitos “filhotes” em diversos países, ou seja, projetos que tinham como objetivo o controle do uso da internet pelo usuário comum. Da mesma maneira, nos EUA, após projetos de lei como o PIPA e o SOPA terem sido rejeitados, vários outros projetos já estavam em tramitação, tendo objetivos semelhantes.

Houve manifestações pelo mundo afora e vários projetos de lei sob o espírito do ACTA foram rechaçados, mas outros foram implementados em alguns países.

O fracasso do ACTA, que não foi aprovado pela comunidade europeia, acabou impulsionando o TPP, projeto muito semelhante entre os países que ladeiam o Pacífico, que está sendo implementado.

Paralelamente, vários equipamentos, programas e sites são usados para vigilância, gravando todas as atitudes / utilizações que o usuário realiza na internet e enviando dados para a NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA –este foi o tema que, em 2013, polarizou a opinião pública mundial, depois das denúncias de Edward Snowden, ex-agente da NSA –veja, a propósito, o documentário Citizenfour, premiado com o Oscar de melhor documentário em 2015:

 

Estratégias comuns

Algumas estratégias são observadas repetidamente nos projetos de lei que objetivam proteger os monopólios e intimidar ou criminalizar os cidadãos em diferentes países:

  • Introduzir penas absurdas, por longos períodos de tempo

o que vc baixou

Quando se compara as penas propostas em diferentes projetos de lei sobre o uso da internet e a disponibilização de arquivos que estejam sobCopyright ou patente, observa-se, por exemplo que o tempo de reclusão em penitenciária é maior que o previsto para atos de enorme violência, como assassinatos e estupros.

  •  Usar a mesma lei sobre propriedade de bens físicos para bens imateriais

Suponha que um carro foi roubado. Quando o dono o procurar não o encontrará. Só há um carro e ele estará com o ladrão.

Agora suponha que alguém disponibilize um arquivo para cópia. Ao final do procedimento existirão dois arquivos perfeitamente iguais. Nada foi roubado de alguém.

Ou seja, diferentemente do que as propagandas dizem, copiar não é roubar. Bens imateriais não têm a mesma natureza dos bens materiais e lidar com eles não pode ter as mesmas consequências jurídicas.

  •  Prolongar o prazo de validade

tempo para obra entrar em DP

Com a sequência de leis a serviço dos monopólios aprovada ao longo dos anos, hoje até é difícil saber quando uma obra finalmente entrará em domínio público. O monopólio pode ser herdado ou vendido e mesmo após a morte do criador haverá muitas pessoas e empresas interessadas em esticar o prazo.

No gráfico acima, veja como o período de validade do Copyright nos EUA pulou dos trinta anos originais para até 110, hoje

  •  Impedir ou restringir a liberdade de expressão sob vigilância constante

O ser humano não se contenta apenas em ter suas próprias opiniões, mas deseja expressá-las e até convencer as outras pessoas de suas ideias. Evidentemente, o Estado não tem o direito de espionar cidadãos. Muito menos de impedir a livre expressão do pensamento. Ao contrário, deve providenciar os meios para assegurar o gozo da livre e plena manifestação do pensamento, criação e informação, os quais, inclusive, vão determinar o futuro da sociedade.

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