Entre os dias 6 e 10 de julho foi realizada em Genebra a primeira reunião do Grupo Intergovernamental de Trabalho para discutir o alcance, natureza e escopo de um instrumento internacional legal obrigatório para as empresas em matéria de direitos Humanos. O Grupo, composto pelos Estados membros da ONU, foi criado pela Resolução 26/9 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em junho de 2014, e realizará mais duas reuniões de trabalho em 2015 e 2016 antes de apresentar um rascunho do tratado para negociação. Trata-se de um momento histórico que acontece depois de 40 anos de debates na ONU – e fora dela – ao redor do tema e cujos encaminhamentos só produziram até agora instrumentos voluntários para o controle das empresas em matéria de violação de direitos humanos. Como é o caso das Diretrizes da OCDE, o Global Compact, a “Declaração Tripartite de Princípios sobre as empresas multinacionais e a política social” da OIT, e mais recentemente os “Princípios Reitores” aprovados em 2011.
Nesse contexto, ocorreu paralelamente ao evento oficial, a semana de mobilização contra a impunidade das grandes transnacionais, organizado pelo grupo intercontinental que lidera a “Campanha Global para Desmantelar o Poder das Corporações e por fim a Impunidade”, que conta com a participação de organizações e movimentos de afetados, direitos humanos, ambientais, sindicais e redes que lutam pela justiça econômica e social, como a REBRIP. Foram realizadas atividades de mobilização fora da ONU que incluíram a ocupação da Praça da Cadeira Quebrada na frente do Palácio das Nações com sessões permanentes com comunidades afetadas ou em luta contra as violações das empresas transnacionais, passeatas junto com organizações da Suíça – contra o TISA e atos em favor de alternativas ao sistema do poder corporativo.
Dos muitos depoimentos de casos de violações de direitos humanos escutados nos encontros promovidos pela Campanha, trazemos os casos da petroleira Total na Nigéria, ganhadora do Prêmio Pinocchio de piores transnacionais de 2014 e acusada de cometer ecocídio. O caso da luta dos mineradores sul-africanos da associação AMCU, que perderam 34 membros durante o Massacre de Marikana, resultado de uma forte represália de forças governamentais contra uma greve que pedia salários mais dignos. As violações cometidas pela transnacional brasileira, Vale, conhecida por ser uma das empresas mais nocivas ao nosso povo, e a Rosi, moradora do Maranhão afetada pela Estrada de Ferro Carajás, que nos contou sobre a negligência da empresa em relação às atividades produtivas da população local, tendo como único interesse o saqueamento de recursos naturais para satisfazer o capital privado. A Rosi, teve a oportunidade de falar na plenária da ONU no momento das discussões sobre a importância do Tratado Vinculante junto com delegados e representantes governamentais e afirmou " serem afetados e terem seus direitos violados pela empresa desde o início da extração de minério de ferro há 30 anos".
Enquanto isso, iniciativas organizadas pela sociedade civil conseguiram reverberar suas posições em relação aos vários pontos que foram discutidos durante os quatro dias da sessão: as obrigações das empresas e dos estados, a abrangência dos direitos humanos que o tratado deveria conter, os mecanismos de aplicação e controle do tratado, as obrigações dos diretores, das subsidiárias e dos fornecedores, as obrigações extraterritoriais, entre outros temas chave. Como por exemplo, a proposta das organizações da Campanha por acordos de comércio, investimentos e as próprias Instituições Financeiras Internacionais e regionais, principais facilitadores da operação das TNCs não violem os direitos humanos, incluindo os econômicos, sociais, culturais, ambientais e laborais.
No começo da sessão foi eleita a presidenta do Grupo, a Embaixadora Maria Fernanda Espinoza Garcés, do Equador, e na sequência foi discutido o plano de trabalho da reunião, elaborado a partir da proposta do Equador. Nessa primeira jornada, mais de 40 estados, a União Europeia, vários organismos internacionais e mais de 40 organizações com status ECOSOC estavam presentes e prontos para darem início aos debates temáticos. Porem, a UE sugeriu duas propostas de alterações o que levou a uma prorrogação das negociações marcadas para começarem na tarde desse dia. A atitude obstrucionista da UE era esperada, pois foram ela e os EUA os que mais se opuseram à aprovação do processo em junho de 2014.
Os dois pontos apresentados foram: incluir um debate sobre os princípios reitores, e mudar o nome do grupo para incluir “todas” as empresas a não só as TNCs. Essa última proposta violentava a interpretação da resolução e finalmente não foi aprovada. Com muita habilidade a Presidenta contornou o bloqueio da UE incorporando do primeiro ponto e rejeitando o segundo. A UE não teve apoio para continuar com a sua requisição. Os debates trouxeram propostas interessantes das organizações sociais e dois palestrantes convidados. A REBRIP acompanhou como membro a submissão escrita da Campanha, conhecida como “os 8 pontos” que foram a referência central de muitos dos delegados que falaram.
As organizações sociais avaliaram como positivo o fato do nosso país ter participado apesar da participação pouco ativa da delegação oficial brasileira. Foi o trabalho da REBRIP junto com outras organizações que garantiu essa presença mínima mas importante. O próximo debate vai exigir uma abertura maior do governo e a coordenação entre os diversos ministérios para a formulação de posição em relação ao conteúdo do tratado. A nossa reivindicação é que essa formulação seja feita de forma participativa e que até a segunda reunião do Grupo Intergovernamental de Trabalho, atividades de consulta sejam realizadas. Em Genebra o governo mencionou consultas já realizadas com a sociedade, mas omitiu dizer que elas foram impulsionadas pela sociedade. Disse também que há um mecanismo interministerial em funcionamento, mas o mesmo até o momento não passa de reuniões informais chamadas pelo Itamaraty, a expectativa é que no próximo período isso vire uma realidade tangível.
Nos últimos dias de mobilização focamos em discutir soluções e estratégias de engajamento global da Campanha e da luta pelos direitos humanos. Uma das ferramentas mais importantes que surgem nesse contexto para combater a arquitetura de impunidade das grandes empresas é o Tratado dos Povos, que ilumina a importância da autodeterminação das sociedades para a criação de uma via econômica sustentável; a necessidade de monitoramento e exposição das violações cometidas pelas empresas com a criação de um mecanismo internacional que sirva para este fim; a reafirmação da superioridade hierárquica dos direitos dos povos em relação a tratados bilaterais de investimento ou de livre-comércio; a proteção das negociações do tratado contra a captura corporativa pelo capital privado. Além disso, falamos muito da importância da interseccionalidade entre a Campanha e a luta trabalhista que está na linha de frente contra essas empresas, respeitando sempre seu protagonismo e os compromissos que já assumem.
A mobilização foi muito bem sucedida em sua idéia de causar impacto durante as negociações do Tratado, tanto do lado de dentro da ONU, como do lado de fora junto à sociedade civil internacional e junto com movimentos locais. O engajamento de todos os participantes foi visível, houve pressão contra os países que desejam bloquear o Tratado e as negociações, os aplausos recebidos pela Rosi após seu discurso na plenária é a prova de que esse movimento é necessário na globalização e para a esperança de um futuro mais sustentável.
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