Os muito ricos sonegam sem culpa

A maioria das pessoas não compreende as complexidades do sistema de aplicações offshore. Elas não têm necessidade – porque não têm dinheiro suficiente para considerar os esquemas e arranjos que são oferecidos nos paraísos fiscais. O mundo “ordinário” e o mundo “offshore” vêm coexistindo há décadas, separados pelo sigilo que se mantém como uma das mais importantes atrações do setor. Esse sigilo – e fiscalização frouxa – lhe tem servido muito bem.

 

Nos últimos 40 anos, as aplicações em paraísos fiscais cresceram exponencialmente. Lá pelos anos 1970, eram um modo das pessoas esconderem seu dinheiro de governos corruptos e predatórios em países instáveis, ou de bancos movimentarem dinheiro pelo mundo evitando flutuações em taxas de câmbio. Então, a falta de transparência e regimes de tributação vantajosos fizeram com que se tornassem o lugar preferido para investimento dos ricos e famosos que desejavam depositar sua riqueza em aplicações legítimas, mas com grandes privilégios fiscais.

 

O que era um sistema caseiro transformou-se num reino expandido para os ricos, e tem havido pouco apetite político para rever o que acontece nesses novos novos domínios. Isso começou a mudar em abril do ano passado com a exposição dos Panama Papers. Milhões de pessoas que eram submetidas a políticas de austeridade (“estamos todos juntos nessa”) desde 2008, em todo o mundo, viram em nítidos detalhes que algumas pessoas estavam se dando melhor que outras.

 

Os documentos mostraram como alguns dos indivíduos e empresas mais ricas do mundo têm sido capazes de esconder seu dinheiro em empresas que não levam seu nome, comprar bens e imóveis requintados a preços inferiores, ou investir em instrumentos financeiros que reduziam ao mínimo os impostos.

 

A maior parte disso era inteiramente legal, mas essa não era a questão. Como observou o então presidente dos EUA Barack Obama: “O problema é que muito disso é legal, e não ilegal.” Os Panama Papers lançaram uma pergunta ética fundamental: isso é justo?

 

As informações estavam contidas em mais de 11 milhões de documentos vazados de um escritório de advocacia, o Mossack Fonseca. Era uma empresa panamenha que disponibilizava para seus clientes a maioria das opções de tributação offshore. Ao mesmo tempo, desconsiderava suas obrigações, determinadas por reguladores que supostamente deveriam garantir que políticos corruptos e criminosos que lavam dinheiro não usem esquemas offshore para esconder suas fortunas.

 

Como resultado direto da publicação das reportagens por um consórcio liderado pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung e o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos [International Consortium of Investigative Journalists], políticos, acadêmicos e investidores iniciaram um debate mais sério sobre a moralidade dos paraísos fiscais offshore, e sobre como eles vinham sendo fiscalizados.

 

Numa intervenção notável, mais de 300 economistas, incluindo o vencedor do prêmio Nobel Sir Angus Deaton, assinaram uma carta aos governantes mundiais que argumentava: “A existência de paraísos fiscais não acrescenta nada à riqueza ou ao bem-estar global total; ela não serve a nenhum propósito econômico útil.”

 

Houve demandas de maior transparência vindas de todo o espectro político, mas isso a uma certa altura levou a compromissos sobre a plena divulgação das informações e garantias de figuras destacadas do setor de offshores. Eles argumentavm que o Mossack Fonseca era uma exceção e não a regra.

 

Por exemplo, o Forum Internacional de Centros Financeiros (IFC, na sigla em inglês), um organismo que representa os escritórios de advocacia offshore , insistiu que os territórios além-mar e dependências da Corôa Britânica tinham “os mais altos padrões regulatórios”.

 

Disseram que exigir mais transparência levaria a mais lavagem de dinheiro o que seria vantajoso apenas para criminosos, ONGs e jornalistas investigativos. Mudanças no setor provocariam danos, insistiu o grupo.

 

Um membro ilustres do IFC é o escritório global de advocaciaAppleby. No ano passado, um sócio da empresa disse a um jornalista que as críticas ao setor eram injustas: “É meio como dizer que porque Harold Shipman [um médico e serial killer inglês] assassinou seus pacientes, todos os médicos deveriam ser trancados na prisão”, disseram.

 

Sabemos disso porque a observação aparece num documento que é parte de um segundo vazamento substancial. Essa nova lote de documentos permitirá a políticos e ao público verificar se declaração sobre o “Dr. Shipman” resiste a uma análise.

 

A Appleby tem por certo uma reputação respeitável.

 

Uma das empresas do “círculo mágico” das firmas de advocacia, com escritórios em 10 países, tem uma clientela importante que inclui alguns dos indivíduos e companhias mais ricas do mundo. O serviço que a Applebly oferece mereceu o título de “firma offshore do ano” em várias ocasiões. Este ano, foi o escritório de advocacia oficial e patrocinador da competição de iatismo Copa da América.

 

A Appleby considera a si mesma uma operação tipo Rolls-Royce. Graças aos documentos vazados, jornalistas de algumas das organizações de mídia mais conhecidas do mundo, incluindo o Süddeutsche Zeitung, o New York Times, a BBC e o Le Monde, tiveram a chance de dar uma espiada debaixo do seu tapete.

 

As revelações proporcionadas pelos documentos levantam novas perguntas sobre a indústria de offshore, aqueles que a regulam e quanta informação temos a seu respeito.

 

Os documentos também ressaltam uma miríade de caminhos legais por meio dos quais os clientes ultra ricos podem minimizar os impostos que pagam – métodos extraordinários, escandalosamente complexos em algumas instâncias, que vão contra a filosofia do setor de offshore, foram condenados por organismos tais como a Comissão Europeia e a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e parecem ter se tornado cada vez mais intragáveis para as pessoas comuns.

 

Há também uma dimensão política, que não era aparente nos Panama Papers. Os documentos mostram o IFC jactando-se de sua influente “penetração” no governo do Reino Unido, com um lobby de ministros e servidores civis. Vangloriava-se de que essa atividade de bastidor pode ter evitado que governantes mundiais concordassem com medidas de transparência mais abrangentes na cúpula do G8 em 2013.

 

Certamente, a Appleby não deseja mais transparência. Internamente, ela argumentou que qualquer mudança significaria custos “arrasadores” para seu negócio.

 

O esforço de lobby é particularmente significativo porque os documentos mostram que, em 2013, a operação da Appleby nas Bermudas estava sob investigação da Autoridade Monetária do país (BMA, na sigla em inglês). A BMA não gostou do que encontrou. Num relatório crítico, ele levantou uma bandeira vermelha para a Appleby em nove áreas, demandando mudanças de “alta prioridade” — entre outros aspectos, na avaliação da companhia de riscos antilavagem de dinheiro e antifinanciamento de terroristas.

 

Essa não foi a primeira vez que a Appleby foi chamada a atenção pela forma como lida com essas questões. Os documentos mostram que ela foi criticada por falta de conformidade em procedimentos de 12 auditorias confidenciais num período de 10 anos na Ilha de Man, nas Ilhas Cayman, nas Bermudas e nas Ilhas Virgens Britânicas (BVI, na sigla em inglês).

 

Assim, ao mesmo tempo em que pressionava contra maior transparência nos paraísos fiscais offshore, e argumentava que tais mudanças eram contraprodutivas e desnecessárias, a Appleby estava consistentemente desrespeitando até mesmo os padrões que os ativistas preocupados com os poderes do sistema financeiro dizem não ser suficientemente rigorosos.

 

A empresa insistiu – numa declaração pública antecipada – que investigou todas as alegações agora feitas a respeito e nada encontrou de errado. Mas recusou-se responder perguntas específicas: por exemplo sobre clientes tais como a Glencore, e como ela adquiriu os direitos de mineração na República Democrática do Congo, uma das nações mais corruptas e empobrecidas do planeta. E o que a Appleby sabe realmente sobre uma rede de empresas que ela organizou para sócios do presidente de Angola, que tem sido insistentemente acusado de corrupção e abuso dos direitos humanos?

 

O documento revela outras menções preocupantes, inclusive uma envolvendo um cliente bilionário designado como PEP – pessoa politicamente exposta. Os PEPs exigem fiscalização extra e devida atenção.

 

Esse bilionário particular desejava fazer algum negócio por meio do escritório da Appleby nas Bermudas, mas o BMA resistiu. A autoridade queria que o negócio fosse melhor conferido, porque o empresário forneceu inegavelmente informações enganosas sobre seus antecedentes num importante formulário de inscrição. Mas a Appleby não queria que esse trabalho de fiscalização extra fosse feito; ao contrário, sugeriu o reencaminhamento do formulário através das BVI, onde “parece que tais problemas não aparecem”.

 

Os documentos mostram que alguns sócios da firma estão claramente contrariados. “Isso é esquisito”, disse um. “Deixe-me fora do grupo por enquanto, no caso de haver qualquer coisa que eu não deveria saber.”

 

Houve profundo mal-estar, também, em torno de outra pessoa politicamente exposta, que havia sido cliente da companhia desde 1984. Em 2013, a Appleby deu-se conta de que ele não era o homem que pensavam ser. O cliente, descobriu a empresa, tinha conexões com um cientista acusado de ser um dos arquitetos do programa de armas nucleares de Saddam Hussein, e a empresa dele havia, no início dos anos 90, sido acusada de ser uma fachada para Saddam.

 

Quando a Appleby foi alertada dessa ligação, os gerentes entraram em pânico. De acordo com um documento examinado pelo Guardian, um sócio sênior perguntou: “Há alguma evidência de que detectamos isso antes? Como pudemos não ter sabido disso antes?”

 

Nenhum deles podia explicar como a empresa poderia ter ignorado o fato durante 28 anos, e sequer saber quem apresentou a pessoa em questão, pra início de conversa.

 

Por tudo isso, a variedade e a natureza dos esquemas de evasão de impostos, revelada pelos documentos, pode causar grande preocupação fora do círculo das elites que fazem uso dos esquemas offshore. Desde maneiras de evitar pagamento de tributos sobre super iates e aviões privados, até estruturas complexas a ponto de fritar os miolos, concebidas para ajudar empresas multinacionais – tudo isso consta nos arquivos.

 

Em 2012, o então ministro das Finanças do Reino Unido, George Osborne, descreveu alguns esquemas agressivos como “moralmente repugnantes”.  O então primeiro ministro David Cameron disse que eles “não eram justos nem corretos”.

 

Mais recentemente, as iniquidades dos paraísos fiscais foram um assunto suscitado tanto pelo presidente dos EUA, Donald Trump, quanto por Bernie Sanders, que concorreu contra Hillary Clinton para a indicação presidencial do Partido Democrata, no ano passado.

 

Sanders teve muito apoio quando afirmou que era hora das maiores corporações dos EUA “pagarem sua justa parte de impostos para que nosso país tenha os recursos necessários para reconstruir-se”. Trump pareceu concordar. Disse que queria trazer de volta “trilhões de dólares dos negócios americanos que agora estão estacionados além-mar”.

 

Contudo, de modo constrangedor para ele, alguns de seus principais assessores e doadores parecem estar entre aqueles que têm dinheiro nos esquemas offshore. E os Paradise Papers mostram que o mundo corporativo dos EUA não tem pressa nenhuma para trazer seu dinheiro de volta à terra firme.

 

No Reino Unido, o manifesto eleitoral do Partido Conservador vangloriava-se de “ação vigorosa contra sonegação e evasão fiscal”. Ainda não aconteceu. O Partido Trabalhista pediu uma investigação pública sobre as questões levantadas a respieto do regime fiscal offshore. Na semana passada, o líder do partido, Jeremy Corbyn, alfinetou a primeira-ministra Theresa May dizendo: “Quando se trata de pagar impostos, a primeira ministra pensa ser aceitável que haja uma regra para os ultra ricos e outra para o resto de nós?”

 

Graças ao vazamento dos Paradise Papers, o mundo terá uma chance de examinar e julgar as entranhas dos esquemas e redes que os políticos dizem achar tão indigestos – e muitas pessoas comuns consideram ofensivos e injustos.

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