SEGUIMOS RECHAÇANDO UMA ALCA COM A EUROPA! 

 

As negociações para a conclusão de um Acordo de Associação Interregional entre o Mercosul e a União Europeia, paralisadas desde 2004, foram retomadas com vontade política e muito pragmatismo em 2013. Porém, a partir do ano passado ganharam um novo momentum.

 

 

O Governo brasileiro resultante do processo de ruptura institucional do ano passado, na área externa, tentou jogar quase todas as suas fichas em um realinhamento, inclusive em termos de comércio, com um projeto de inserção subordinada no cenário internacional vinculado em especial aos EUA e à União Europeia. O resultado das eleições dos EUA no final do ano passado, com a eleição de Trump e seu discurso de alguma reforma das posições pró-livre comércio dos EUA estreitaram o campo de possibilidades, e colocaram como ainda mais estratégico para os caminhos definidos pelo novo governo fechar o acordo com a União Europeia, para o qual conta com estreita parceria com o governo neoliberal de Buenos Aires, arrastando consigo o conjunto do Mercosul.

 

 

A União Europeia, em grave crise desde 2008, agora confrontada com o processo de saída do Reino Unido (“Brexit”) e a paralisação das negociações comerciais do TTIP com os EUA, vê na expansão dos interesses de suas transnacionais e a abertura de possibilidades de expansão de mercado para com o Mercosul e outras regiões uma parte da solução para seus graves problemas sociais, ambientais, econômicos e políticos.  

 

 

Em nota publicada em 2004, um amplo conjunto de organizações e movimentos sociais do Mercosul e da União Europeia afirmaram:

 


“As organizações e movimentos da região, que fizemos a Campanha Contra a ALCA no Cone Sul, queremos tornar pública e fundamentar nossa oposição a este acordo nocivo com a União Europeia, que coloca em jogo nossa soberania, nosso futuro e as possibilidades de avançar uma verdadeira integração sustentável no âmbito sub-regional e com os povos europeus.


Em troca de supostos ganhos para alguns poucos setores agroexportadores, nossos governos do Mercosul estão sendo pressionados a  entregar setores chave de nossas economias à competição desigual com as grandes empresas transnacionais Europeias. Vemos com grande preocupação o avanço das negociações em áreas como bens industriais, pesca e transporte marítimo, seguros, serviços ambientais − inclusive água e saneamento − serviços financeiros e de telecomunicações, compras governamentais, normas mais rígidas de propriedade intelectual que impedirão a comercialização de genéricos a preços mais acessíveis, restringirão o desenvolvimento de uma indústria farmacêutica de bases nacionais, as possibilidades de transferência tecnológica e facilitação a apropriação indevida do conhecimento associado ao uso da biodiversidade. Não podemos deixar de destacar as garantias jurídicas adicionais aos investidores europeus, dadas pelo Acordo. Declaramos que esta barganha é absolutamente inaceitável, bem como a total falta de transparência com a qual estão sendo conduzidas as negociações.”

 

 

O que foi e vem sendo negociado até aqui mantém a estrutura negociadora e os conteúdos da antiga ALCA.

 

 

Sobre as negociações agrícolas, a aposta de nossos governos em sustentar esta suposta integração econômica no aumento das exportações de origem agropecuária e agroindustrial supõe dar prioridade à agricultura para exportação, no lugar da agricultura familiar e camponesa voltada ao abastecimento alimentar de nossa população. A agricultura para exportação, baseada em grandes extensões das monoculturas, beneficia somente uma ínfima minoria dos agricultores da região, quais sejam os grandes latifundiários, vinculados de forma subordinada a cadeias transnacionais dominadas desde fora. Os resultados desse modelo de exploração da terra são nefastos: êxodo rural, maior concentração fundiária, perda de biodiversidade (sendo uma das atividades que mais contamina água, solo e ar), e problemas ambientais graves, como a proliferação de cultivos transgênicos, entre outros. Além disso, já várias vezes os negociadores europeus afirmarem que não têm mandato para dar mais acesso a mercados aos produtos do agronegócio, assim o máximo que se propõe a fazer é reduzir algumas taxações sobre cotas, aumentando não o volume exportado, mas a rentabilidade de alguns setores privados exportadores, em troca de abertura nos demais setores.

 

 

As negociações sobre produtos industriais são também um item de forte interesse europeu para mitigação da sua crise no curto prazo. O interesse em estimular as exportações de manufaturados – um dos principais itens da sua pauta exportadora ao Mercosul – deve-se a que isto se traduziria rapidamente em melhoras nos altos índices europeus de desemprego. Entretanto esta liberalização no âmbito do Mercosul agravaria o risco da desindustrialização de nosso país e nossa região e de diversificação da estrutura produtiva com agregação de valor no bloco do sul, afetando também o emprego industrial e particularmente o emprego feminino – maior nos setores de menor competitividade relativa, e inclusive reduzindo empregos de melhores ingressos que os empregos agrícolas.  E isso em um momento em que os setores de produção industrial no Brasil já estão impactados por um câmbio sobrevalorizado. Além disso, uma maior entrada de produtos industriais europeus pode prejudicar a montagem de cadeias produtivas regionais no Mercosul. Lamentamos que o chamado Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), se restrinja a ações para o comércio exterior, mesmo que para isso atinja negativamente a indústria e o desenvolvimento nacionais, refém que parece estar dos lobbies a favor do livre comércio.

 

 

Mais grave de tudo, informes do lado europeu dão conta de que, enquanto a oferta atual que o Mercosul coloca na mesa oferece reais melhorias quanto a questões tarifárias, facilitando a vida dos europeus, a oferta europeia se limitaria em geral a concessões tarifárias de nação mais favorecida, ou seja, que não iriam muito além do que já consta nos acordos da OMC – que justamente terá sua Ministerial em dezembro próximo em Buenos Aires e onde se prevê que novas concessões serão definidas. Ou seja, além de ruim no geral, o acordo é assimétrico contra o lado dos países em desenvolvimento do Mercosul, favorecendo os desenvolvidos países da União Europeia, o que por si só é uma mostra de subalternidade no processo negocial.

 

 

As negociações de preferências para a UE nas compras do setor público nos países do Mercosul são, a nosso ver, inaceitáveis. Os países do Mercosul estão dando sinais de que farão "ajustes" em suas posições de modo a aceitar a abertura aos europeus  para compras governamentais no nível federal. Trata-se de uma concessão muito grave porque poderia abrir o precedente para a UE passar a participar de concorrências de compras do setor público que, nos países do Mercosul, são um instrumento fundamental de políticas públicas. As compras governamentais são cruciais para a preservação do direito e da capacidade do Mercosul em fazer políticas públicas nacionais, inclusive políticas industriais autônomas, e por isso não podem ser oferecidas preferências aos europeus. Ainda mais em um momento em que as economias do Mercosul enfrentam estagnação e recessão, e dependem tanto de algum papel ativo do setor público para ter alguma reação do ponto de vista do crescimento.

 

 

Um dos pontos mais preocupantes na agenda de interesses ofensivos da UE é em propriedade intelectual, calcada em propostas com graves consequências para a saúde pública. O bloco europeu defende propostas como exclusividade de dados, extensão de prazo de patentes e apreensão de medicamentos em trânsito. Todas elas limitam a circulação de medicamentos genéricos, acentuando ainda mais a crise global de acesso a medicamentos e indo na contramão das recomendações do Painel de Alto Nível da ONU sobre acesso a medicamentos, convocado em 2016 pelo Secretário Geral para buscar soluções frente a cada vez mais gritante "incoerência política" entre direitos de propriedade intelectual e direitos humanos. Além disso, destacamos que essas propostas, além de irem muito além do exigido pelo Acordo TRIPS, vão de encontro a diversas recentes iniciativas na região, como as novas guias de exame de patentes da Argentina, as iniciativas de licenciamento compulsório na Colômbia e no Peru, e as proposta de reforma da legislação brasileira que são favoráveis à saúde pública. Por esta razão, é fundamental que os negociadores dos países que compõem o Mercosul não aceitem a incorporação de dispositivos do tipo TRIPS-plus e não endossem cláusulas que contribuam para o chamado enforcement de propriedade intelectual. Também é salutar que propriedade intelectual não se torne objeto de barganha para a finalização do acordo, visto o impacto negativo que as regras propostas pela UE podem causar na garantia do direito à saúde dos povos.

 

                                                                                                               

As negociações têm se desenrolado sem transparência. Ao contrário até das negociações anteriores da ALCA e no âmbito da OMC − onde, depois de anos de luta e reivindicações, as organizações sociais conseguiram conquistar o acesso a documentos e, em alguns casos, inclusive a reuniões oficiais − nas negociações entre UE-Mercosul, se já não tínhamos acesso aos documentos de negociação, agora com o novo governo que não mostra nenhuma transparência em suas negociações internacionais, estaremos ainda mais afastados. Exigimos que os pormenores das negociações sejam divulgados e que antes de cada reunião, a sociedade conheça as propostas com as quais o Mercosul concorda e o conteúdo proposto pela UE.  

 

 

Reafirmamos mais do que nunca nesse novo cenário internacional nosso compromisso na construção de laços de integração cada vez mais fortes com os povos europeus, mas fundamentados em critérios de solidariedade, igualdade, justiça e respeito aos direitos humanos de nossos povos. Exigimos políticas conjuntas de geração de empregos e que os direitos sócio laborais sejam protegidos, sendo priorizados sobre os objetivos de liberalização comercial, com base na Declaração Sócio Laboral do Mercosul e a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

 

E, mais do que tudo, não vemos no governo atual brasileiro legitimidade para seguir adiante com esse processo, nem legitimidade em um Mercosul onde a  participação da Venezuela foi questionada de forma casuística e antidemocrática, situação ainda não  resolvida.

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